Um sistema de vendas que parecia fadado à extinção é hoje o terceiro maior canal de comercialização de livros do país. Entre 2006 e 2008, a participação de mercado das vendas porta a porta de obras literárias no Brasil mais que dobrou, saltando de 5,4% para 13%, atrás apenas de livrarias e distribuidoras. A evolução, que a princípio surpreende em um cenário de expansão do comércio eletrônico e do sentimento de insegurança da população, traz uma boa notícia: seu crescimento está sendo sustentado pelas classes C e D, que, em função do aumento de seu poder aquisitivo, passaram à condição de consumidores de livros.?“O frequentador das livrarias e o comprador pela internet são leitores já formados. No porta a porta, trabalhamos aquele que nem tinha a intenção de comprar , mas acaba seduzido quando é motivado pelo vendedor. É um mercado formado pelos consumidores das classes C e D que, com a melhoria da renda, começaram a comprar livros também”, avalia o presidente da Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL), Luis Antonio Torelli. O setor faturou R$ 45 milhões e conta hoje com cerca de 30 mil vendedores.?Pela classificação mais recente da Fundação Getúlio Vargas, enquadram-se na Classe D aqueles com renda familiar entre R$ 804 e R$ 1.115. Na classe C, estão as famílias com renda entre R$ 1.115 e R$ 4.807.?Moradora de Varginha, a secretária Maria das Graças Silva, por exemplo, não tem o hábito de ir a livrarias, mas conta que não resiste à curiosidade de conhecer um título novo quando um vendedor bate à porta. “A oportunidade é que faz a gente fechar a compra”, relata a secretária, lembrando a economia dos gastos com transporte. “Quem mora nos bairros mais afastados tem menos oportunidades de ir ao centro, porque isso significa pegar ônibus, gastar dinheiro. E livro não é considerado artigo de primeira necessidade”, aponta.?Mesmo com o significativo ganho de mercado do porta a porta nos últimos dois anos, o segmento não é encarado como um concorrente pelo presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Vítor Tavares. “Há uma lacuna a ser preenchida, principalmente longe dos grandes centros, onde não há livrarias. Se o porta a porta prospecta novos leitores e ajuda a criar o hábito da leitura, esses novos leitores serão, no futuro, clientes das livrarias. O importante é aumentar o índice per capita de leitura no país”, avalia Tavares.?Ele lembra que, segundo estimativas da ANL, há hoje no Brasil cerca de 2 mil cidades sem uma livraria sequer, de um total de 5.565 municípios. O índice médio de leitura do brasileiro é de 2,4 livros por ano, bem abaixo, por exemplo, da vizinha Argentina, com 5,8.?Tavares reconhece que há na população de menor poder aquisitivo um sentimento de desconforto em relação ao ambiente “nobre” das livrarias, daí o crescimento forte do canal porta a porta nesse segmento. “É preciso quebrar esse paradigma. Qualquer pessoa pode entrar em uma livraria e folhear os livros que quiser sem levar nenhum. Uma iniciativa interessante que as livrarias dos grandes centros vêm adotando é a criação de ambientes específicos para crianças. Elas entram e já sentem que o espaço é delas”, aponta.
Cadeia do livro paga incentivo à leitura
?As classes C e D estão na mira do Fundo Setorial Pró-Leitura, que o Governo federal pretende aprovar ainda este ano para fomentar a leitura no país. Com uma previsão inicial de arrecadação de pelo menos R$ 40 milhões por ano, o fundo será criado por meio de um projeto de lei que deve ser enviado ao Congresso ainda na primeira quinzena do próximo mês. A arrecadação, que deve começar já em 2010, será feita por meio da contribuição de toda a cadeia do livro: editores, distribuidores e livreiros pagarão, cada um, 0,33% sobre cada exemplar comercializado. A criação do fundo, que agora é consenso entre Governo e iniciativa privada, foi marcada por um processo polêmico e conturbado. O receio do setor, que em 2004 foi desonerado do pagamento de PIS e Cofins, era que a criação de novo imposto encarecesse o produto.
A isenção de PIS e Cofins, há cinco anos, propiciou um alívio de aproximadamente 10% sobre o faturamento. “Havia um receio de que o imposto voltasse, mas, nos moldes acertados, o impacto não chega a 1% sobre o custo final. O fundo não deve ser encarado como um ônus, mas como um investimento estratégico”, defende o diretor Nacional de Livro, Leitura e Literatura do Ministério da Cultura (Minc), Fabiano dos Santos Piúba. A ideia, segundo o diretor, é usar o dinheiro arrecadado para financiar projetos – públicos ou privados – de democratização do acesso ao livro e à leitura e formação de leitores.?“Estamos muito focados na questão do acesso e da formação de leitores. Por isso, as classes C, D e E são prioridade. Também daremos atenção especial aos municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)”, adianta o Piúba.?De acordo com o diretor, os projetos serão avaliados pelo Comitê Gestor do Fundo Setorial Pró-Leitura, composto por membros do Governo Federal, do setor produtivo e da sociedade. (veja quadro)?“Pode ser, por exemplo, um projeto de uma secretaria de educação para a implantação de uma biblioteca pública em uma periferia ou um projeto de formação de leitores de uma ONG. Também estamos estudando a criação de linhas de crédito para que pequenas editoras possam incrementar sua produção”, detalha.?Após a desoneração, em 2004, a cadeia livro chegou a criar um fundo próprio, de contribuição voluntária, para viabilizar programas de acesso e estudos sobre o perfil do leitor brasileiro. O recurso, que não tem o valor divulgado pelas entidades gestoras, foi utilizado, por exemplo, para a criação do Instituo Pró-Livro, que hoje viabiliza uma série de iniciativas do Programa Nacional do Livro e da Leitura. “Era uma proposta diferente, de atendimento aos interesses mais imediatos do setor produtivo”, pondera Piúba.?A presidente da Câmara Brasileiro do Livro (CBL), Rosely Boschini, garante que não haverá repasse para o consumidor. “Trata-se de um compromisso nosso em prol do crescimento do número de leitores e melhoria do índice de leitura no país”, afirma Boschini, para quem o desejado país de leitores depende de uma inclusão social em escala mais ampla.?“Estamos falando de crescimento sustentado da economia, melhor distribuição de renda, incremento das políticas governamentais de acesso ao livro e mobilização do mercado e das entidades de classe do setor, o que já vem sendo feito”, pondera. A CBL é uma das entidades com cadeira no comitê gestor do Fundo Pró-Leitura.?Para o presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Vítor Tavares, linhas de crédito especiais para o setor podem ajudar a oxigenar o interior. “Na França, há uma experiência nesse sentido. Isso pode ajudar as pequenas livrarias a se alavancarem”, opina. ?Também favorável à criação do fundo, a socióloga e vice-diretora da Editora UFMG, Silvana Coser, cobra uma atenção especial para a questão do professor. “Não adianta falar que se deve ler se não há o exemplo. Nesse sentido, a participação do professor é importante. Mas ele tem vida cultural? Tem salário para isso? Ele tem o hábito da leitura? As pesquisas mostram que não, o que é desolador. Acabamos reproduzindo no sistema escolar uma carência que vem do ambiente familiar. Isso tem de ser considerado”, afirma.?Para o diretor comercial da editora Fappi, Alex Gandra, campanhas especificamente direcionadas para os pais devem ser um dos focos de atuação do novo fundo. “Acho que é um movimento que já começou e deve ser estimulado. Os pais estão mais preocupados e conscientes da importância da leitura para o futuro dos filhos. As crianças de hoje já leem mais do que há alguns anos”, avalia Gandra. A editora tem no porta a porta seu maior canal de distribuição e nas obras pedagógicas e infantis seu principal foco.?O presidente da Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL), Luis Antonio Torelli, vê o Fundo Pró-Leitura como um investimento que beneficiará todo o setor, em especial, o de venda em domicílio, focado nas classes C e D, já eleitas pelo Minc como público prioritário. “Quanto mais leitores, mais livros vendidos”, aponta Torelli.?A experiência dos vendedores mostra que a melhora do acesso e do preço é determinante para a conquista de novos leitores. A revendedora Avon Maria Lena Arantes, 77 anos, conta que os produtos de beleza são o alvo das clientes, mas muitas não resistem à oferta dos livros.?“Em geral elas já conhecem as obras de nome, mas não pretendem comprá-las porque acham que são caras. Acho que o que ajuda a ter uma saída boa é o preço inferior ao das livrarias e a facilidade da entrega em mãos. As clientes não têm que sair de casa para comprar”, avalia Maria Lena, que tem entre suas clientes secretárias, manicures, operadoras de telemarketing e auxiliares de serviços gerais. A Avon dá capilaridade à distribuição do livro, já que conta com um exército de mais de um milhão de revendedoras.?“A oportunidade de estar frente a frente com o vendedor, na porta da sua casa, contribui para fechar o negócio”, confirma a secretária Maria das Graças Silva, que não se aventura em livrarias, mas não resiste quando uma oferta toca a campainha.?A gerente de Marketing da área Avon Moda & Casa, Adriana Picazio, conta que os preços, muitas vezes mais baixos do que os praticados pelo mercado, são resultado de grandes encomendas. “Fazemos negociações específicas para determinadas ofertas. No ano passado, um em cada três livros O Segredo vendidos no país foi comercializado pela Avon”, contabiliza.?A experiência dos vendedores também confirma que a força do porta a porta no interior vem, exatamente, da dificuldade de acesso. “Quanto menor a cidade, melhor para vender”, conta o vendedor Vicente do Carmo Filho, 52 anos, há 32 no ramo, com atuação no Centro-Oeste de Minas. ?“O porta a porta atende a todo o país. Muitas vezes são pessoas que nunca tinham entrado em livrarias, mas acabam se interessando pelas obras”, destaca o diretor da Editora Bandeirantes, Carlos Alberto Gomes de Moraes, atacadista de Belo Horizonte que atende a cerca de cem vendedores.?Segundo estimativas da ABDL, um vendedor iniciante ganha cerca de R$ 1 mil mensais. Já a média salarial para um vendedor experiente chega a R$ 3.500. “Em geral, são homens com idade entre 25 e 35 anos e curso de nível médio”, resume o presidente da ABDL.
Fonte: Jornal Hoje em Dia
Autores: Cássia Eponine, Margarida Hallacoc e Douglas Fernandes