Fundo de Leitura: Duro recado aos editores

No lançamento do projeto do Vale Cultura, na última quinta-feira, dia 23, enquanto o cinema, os espetáculos e o teatro foram as estrelas da noite, para o livro sobrou apenas um duro recado do Presidente Lula endereçado aos editores. Mencionando a desoneração do PIS/PASEP – COFINS para as editoras, o Presidente chamou atenção para o fato de que essa medida não resultou em diminuição do preço do livro e que os editores continuavam a litania de reclamações contra o governo.
Sinto-me muito confortável para comentar – e aplaudir – as observações do Presidente Lula, pois estava numa posição privilegiada quando da negociação que resultou na desoneração. Contratado pelo Cerlalc – Centro Regional para o Livro na América latina e no Caribe, órgão da Unesco – prestava assessoria ao que então era conhecido como programa “Fome de Livro”.
O assunto da desoneração surgiu quando da conversão em Lei da Medida Provisória 183, de 2004, que tratava da desoneração do PIS/PASEP-COFINS na comercialização de fertilizantes e defensivos agropecuários. Na discussão dessa MP no Congresso Nacional, por iniciativa do executivo foram feitos vários adendos, além dos apresentados por deputados e senadores.
O Resultado foi a Lei 10.925, de 23 de julho de 2004, que instituía, em seu artigo 5, no parágrafo 4, o seguinte:
“§ 4o Fica reduzida a 0 (zero) a alíquota da COFINS incidente sobre a receita de venda de livros técnicos e científicos, na forma estabelecida em ato conjunto do Ministério da Educação e da Secretaria da Receita Federal.” (NR)”.
Quando li as notícias sobre o assunto, várias delas enfatizando a desoneração dos livros técnico científicos, fui conversar com Galeno Amorim, na época o Coordenador do “Fome de Livro”, que me convidara para aquela consultoria.
Galeno Amorim foi secretário de Cultura de Ribeirão Preto durante a gestão de Antônio Palocci. Lá tomou várias iniciativas importantes para o livro e a leitura, inclusive o estabelecimento de um grande programa de bibliotecas públicas no município. Por sua experiência chegou a essa coordenação no MinC, que tinha como objetivos principais o estabelecimento de um programa de bibliotecas que zerasse o número de municípios brasileiros que não dispunham desse equipamento cultural, o estabelecimento do Plano Nacional do Livro e Leitura (como consequência de decisão da Cúpula dos Chefes de Estados Ibero-Americanos de 2003) e a regulamentação da Lei do Livro, que fora promulgada em 31/10/2003.
Mostrei ao Galeno Amorim a inconsistência da medida: não era possível separar o livro “técnico científico” de qualquer outro. Livro, do ponto de vista fiscal, é definido em tabelas que determinam as características de cada produto para efeitos de todas as tributações, inclusive as alfandegárias. A Norma Comum do Mercosul, instrumento legal vigente no Brasil para essa classificação – e que seguia de perto outras normativas internacionais – define o livro em seu capítulo 49. No caso, especificamente, as seções 49.01 a 49.05. A seção 49.01 inclui “Livros, brochuras e impressos semelhantes, mesmo em folhas soltas”. Nas sub definições, explicita que os livros podem ser em folhas soltas, mesmo dobradas, dicionários e enciclopédias, mesmo em fascículos, e outros.
Ou seja, a norma fiscal define livro pela sua forma, e não por seu conteúdo. Por essa razão tornava-se impossível distinguir o livro “técnico científico” de outro qualquer. Muito menos se essa distinção fosse feita por um fiscal alfandegário. Conceder tal prerrogativa a esse tipo de funcionário implicaria, ademais, em desobedecer um preceito constitucional (Art. 5º. Inciso IX e Art. 220, particularmente o seu § 2, da Constituição Federal, que garante a livre expressão do pensamento e veda qualquer forma de censura). Se um fiscal da receita tivesse o poder de determinar qual o livro “adequado” para a isenção e qual o “não adequado”, teria que fazê-lo sem nenhum parâmetro, com base única e exclusivamente em sua subjetividade.
Galeno Amorim percebeu imediatamente a brecha que se abria no final do parágrafo, que delegava a definição do que seria desonerado para uma instrução normativa conjunta do Ministro da Educação e do Secretário da Receita Federal. Note-se, de passagem, que o Ministro da Cultura seria mero espectador, segundo o texto legal. A capacidade de articulação do Galeno permitiu que as conversas fluíssem entre o MEC e a Receita, particularmente pelo o fato do Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, já ter demonstrado boa vontade para apoiar políticas públicas que favorecessem o livro e a leitura.
Foram dezenas de minutas de notas técnicas e minutas de avisos ministeriais redigidos, encaminhando a solução do problema via regulamentação da lei recém aprovada pelo Congresso.
Nesse ínterim, entre as discussões visando a regulamentação da Lei do Livro e do programa do Ano Ibero-Americano do Livro e da Leitura em 2005 (que veio a se chamar VivaLeitura e instituiu o Plano Nacional do Livro e da Leitura), quando se discutiam os meios de financiar os programas de implantação de bibliotecas e de programas de leitura, surgiu a observação: estava-se cuidando de eliminar uma tributação que variava de 3,65% do faturamento para as empresas no regime do lucro presumido a uma média de 7% sobre o faturamento para as empresas no regime do lucro real. O que a lei previa apenas para os livros “técnico científicos” seria estendida para toda a produção editorial do país. Excluíam-se dos benefícios apenas as editoras e livrarias que estivessem no regime do Simples.
Nesse contexto valia a pena fazer a proposta às editoras, nesses termos: o Governo Federal promoveria a desoneração do PIS/PASEP-COFINS e, em troca, se instituiria uma contribuição compulsória, também sobre o faturamento, no valor de 1% deste, para o financiamento dos programas de bibliotecas e de promoção da leitura.
A desoneração continuaria a ser muito significativa para o desempenho das empresas, ao mesmo tempo que se destinariam recursos específicos para programas de biblioteca e de apoio à leitura. Proposta entusiasticamente aceita pelas entidades do livro, que foram consultadas.
As entidades do livro, que não estavam mobilizadas para o assunto recebiam, por iniciativa do Executivo, a proposta de trocar o PIS/PASEP-COFINS (3.65 a 7% do faturamento das empresas) por uma contribuição que seria destinada ao desenvolvimento do mercado editorial.
O que ficou pendente na ocasião foi a forma de estabelecer legalmente esse fundo e o seu mecanismo de administração. Pensava-se em alguma coisa parecida com o “sistema S – Sesc-Senac, Sesi-Senai e congêneres”, embora com a presença do governo, através do MEC e do MinC, de modo a que houvesse uma administração compartilhada desses recursos, que não entrariam no caixa único da União.
Como, naquele momento, pensava-se fazer essa desoneração através da resolução normativa, era inevitável que a formalização desse fundo e de seu modo de administrar ficasse para depois. Ou pelo menos corresse em paralelo, como defendi na época.
Outro fator interveio na ocasião. O Senador José Sarney propôs apresentar uma emenda à MP 202 para que a desoneração não fosse feita por instrução normativa e sim por um diploma legal mais forte. O argumento era convincente: uma lei certamente tinha uma força muito maior que a instrução normativa.
Assim foi feito e o Senador Sarney apresentou sua emenda à MP 202, que tratava de portos, de tributação do mercado financeiro. Uma típica “linguiça” legislativa como então podia ser feita. Apresentada a emenda foi consequentemente aprovada a lei 10.996, de 15 de dezembro de 2004, logo sancionada pelo Presidente da República. Nela, no meio de medidas que tratavam de portos, reajuste do imposto de renda, Zona Franca de Manaus e outros quejandos, estavam os dois artigos que reduziam a 0 (zero) as alíquotas do PIS/PASEP-COFINS para livros.
A cerimônia de sanção da lei transformou-se em uma festa no mundo editorial, que compareceu em grande número no Palácio do Planalto.
Bom, ficou pendente a questão do fundo. Passou o Natal e o Ano Novo e – lembrem-se – logo em janeiro estourou a primeira crise do que mais tarde iria crescendo até chegar ao chamado Mensalão: o caso de Waldomiro Diniz.
Escândalo para todos os lados, o Ministério da Cultura não se mexeu para viabilizar o projeto que instituiria o fundo para a leitura. Os editores, na moita.
“Y asi se pasaron los años”, como diz o bolero. O MinC não se mexia. Os editores fingiram que tomavam a iniciativa e fundaram o Instituto Pró-Livro, com contribuições voluntárias de algumas editoras. Algumas editoras. Contribuições irregulares. Muito longe de equivaler ao 1% do faturamento. É bom ressaltar que a questão da administração desse fundo não é questão irrelevante. O MinC já deu repetidas mostras de incapacidade de gerir fundos: não consegue executar todo seu orçamento e chega a devolver recursos do Fundo Nacional de Cultura, dinheiro proveniente das loterias. O temor de que o dinheiro acabasse na vala comum do Tesouro e não fosse usado para bibliotecas e programas de leitura tem seus fundamentos.
Há uns dois anos atrás, em reunião com dirigentes da CBL, deixei minha opinião de que deveriam tomar iniciativa e propor uma forma de tornar compulsória a contribuição das editoras e a forma de administrar os recursos. Os editores preferiram esperar…
Até que, quase cinco anos depois da desoneração, o Presidente da República, no evento de lançamento do Vale Cultura, mostrou que o Governo Federal não esqueceu o compromisso firmado e vai cobrá-lo. E os editores terão que se ver com a má vontade presidencial em relação ao seu comportamento, que o MinC certamente usará.
Os editores perderam a oportunidade de mostrar que podiam defender seus interesses de forma construtiva, levando em consideração o bem comum e o desenvolvimento das bibliotecas e dos programas de promoção da leitura. Uma atitude propositiva que traria benefícios estratégicos e de longo prazo para o setor, além de contribuir efetivamente para o acesso ao livro e à leitura para todos os brasileiros. Satisfeitos com a desoneração, apostaram nos seus interesses imediatos e fizeram por onde merecer a reprimenda. Correm o risco, agora, de ver o fundo de leitura criado sem a sua participação na administração. Sem mencionar que qualquer lei que trate do sistema fiscal pode voltar a instituir alíquotas positivas para a cobrança do PIS/PASEP-COFINS para o segmento empresarial.

Autor: Felipe Lindoso é editor, antropólogo e estudioso do mercado editorial e das políticas públicas para o livro no Brasil.

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Associação Brasileira de Difusão do Livro, fundada em 27 de outubro de 1987 é uma entidade sem fins lucrativos, que congrega o setor chamado porta a porta, ou venda direta (fora internet).

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