Agenda farta, prazos curtos: trabalho. Suas obrigações, contudo, não extirparam a simpática disposição revelada ao falar do que lhe encanta, o motivo da labuta – leitura e política pública. Fabiano dos Santos Piúba aceitou há muito o desafio de relacionar essas duas palavras-chave. O cearense é Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará e, no Estado, coordenou o setor de Políticas de Livros e de Acervos da Secretaria de Cultura (Secult – CE), onde elaborou o projeto Agentes de Leitura. Atualmente, é Diretor do Livro, Leitura e Literatura, do Ministério da Cultura. Nesta entrevista, concedida entre reuniões e telefonemas, Fabiano dos Santos discute sobre as estratégias e ações governamentais desenvolvidas para fomentar a economia do livro, garantir a democratização do acesso, estimular a leitura no País e transformar as demandas relativas ao livro e à leitura em políticas públicas perenes.
Vida e Educação – Fabiano, em entrevista à TV Senado, você falou sobre a dimensão política da palavra leitura. Na sua opinião, o governo de um país se beneficia com a formação de cidadãos leitores? Nesse caso, leitores não só de livros, mas leitores do mundo?
Fabiano dos Santos – Bem, existe uma frase célebre de Monteiro Lobato que diz que um país se faz com homens e livros. Essa frase foi muito bem colocada naquela situação quando ele projeta que o acesso ao livro, a experiência que o livro pode possibilitar em cada pessoa, é um elemento também de desenvolvimento. Hoje, eu gosto de dizer que um país se faz com homens (aí você pode dizer mulheres, crianças), livros, e leitura. Essa palavra leitura é fundamental porque, ao mesmo tempo que você coloca o livro como epicentro, objeto essencial de uma política de formação de leitores de um país, você inclui essa nova[perspectiva] que estabelece que não apenas o acesso ao livro é o importante, não é? Você pode ter várias bibliotecas, pode modernizá-las, formar acervos e mais acervos, mas se você não coloca a dimensão da formação leitora, você fica com o déficit, com uma política capenga em relação as suas metas. Então, a palavra leitura tem essa dimensão mais humana. Enquanto o livro é o objeto de desejo, digamos assim, a leitura é o que vai fazer com que o ser humano possa se encontrar com o outro, com o mundo e consigo mesmo.
VE – Uma recente pesquisa do economista norte-americano James Heckman, produzida em parceria com outros três brasileiros, na qual defendiam que 93% das diferenças cognitivas medidas entre alunos de diferentes condições sociais aos 13 anos de idade já estavam presentes aos cinco anos. Pensando sobre a importância da formação inicial, que estratégias têm sido elaboradas para estimular a leitura desde a infância, desde esses primeiros anos?
FS – O Ministério da Cultura (MinC) recentemente começou a desenvolver uma preocupação nessa área e a formular uma política voltada para a cultura da infância, desde a questão do direito do brincar, dentro de uma diversidade cultural, mas também do acesso ao livro e à leitura. A gente sabe da importância do contato da criança com esse universo, um exemplo são as mães que contam histórias ou que lêem livros para crianças ainda na barriga, parece uma brincadeira, não é? Mas se você cria esse contato desde cedo, percebe-se que a possibilidade daquela criança despertar o interesse e o gosto pela leitura vai ser muito maior, algo fundamental no processo de alfabetização e na sua experiência escolar como um todo. Um dos problemas que eu vejo na escola é que, na primeira infância, você tenta despertar esse interesse pela leitura como algo mais prazeroso, mais relacionado com a vida, só que, em determinado momento, depois que a criança é alfabetizada, abandona-se a literatura, a leitura, por uma gramática. Nessa perspectiva, tanto o Ministério da Educação (MEC) como o MinC, têm procurado criar ambientes favoráveis para a leitura, e três deles os principais: um é a família, a leitura dentro de casa, com os pais; o outro é a escola, que tem um papel fundamental na formação leitora, pra despertar esse gosto na infância; e o terceiro é a biblioteca. Resumindo isso, nós colocamos que toda criança que tem o direito de brincar, deve ter também o direito de ler, nessa perspectiva mais cultural.
VE – Segundo dados do IBGE, 73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da população. Como promover uma descentralização do livro e da leitura no País?
FS – Esse é o norte da política do MinC. Não dá pra você fazer políticas públicas para um público já leitor, isto é o que a gente está construindo. Temos tentado mudar a perspectiva de política pública inclusive para o próprio mercado editorial, que, de certa forma, se contenta com as vendas governamentais. O MEC, aliás, é um dos maiores compradores de livro do mundo e o MinC, por meio da Biblioteca Nacional, também tem uma grande sistemática de aquisição de livros. A nossa perspectiva é atuar diretamente num público não leitor, na promoção do acesso ao livro, seja por meio de bibliotecas, pontos de leitura, bibliotecas comunitárias. O Programa Mais Cultura, em outubro de 2007, teve um mote fundamental que foi a democratização do acesso aos bens e serviços culturais, quer dizer, enquanto os outros programas são mais voltados para processos de criação e de produção cultural, o Mais Cultura é voltado para o publico beneficiário dessa produção e dessa diversidade cultural brasileira. Nossa prioridade é exatamente essa, por isso o recorte territorial do MinC: atuar em municípios com baixo IDH, com baixos Indicadores de Educação Básica, que é o Ideb, áreas com vulnerabilidade social, com índice alto de violência, porque, como eu disse, não adiantar fazer política para um público leitor e é nesse sentido que a gente vem atuando.
VE – O Vale cultura foi considerado pelo governo a primeira política pública voltada para o consumo cultural. Quais as estratégias governamentais de controle e de fiscalização para que este recurso seja, de fato, investido em cultura?
FS – O Vale Cultura, primeiro, é um instrumento fundamental de acesso aos bens e produtos culturais ao trabalhador, para todos aqueles que teriam uma dificuldade maior de ir ao teatro, ir ao cinema, comprar um livro, um DVD, enfim os produtos culturais. A idéia é que a gente possa ampliar o consumo cultural, e que a gente possa mesmo usar essa expressão. Ele vai funcionar na mesma perspectiva do que é o Vale Refeição, o Vale Transporte e a gente sabe, talvez sua pergunta seja em função disso, que isso também vira moeda de troca e é negociado aí em várias esquinas do Brasil.
VE – A questão é exatamente esta.
FS – Pronto. No caso do Vale Cultura, esse controle vai se dar porque o trabalhador vai receber essa cota já no próprio cartão, para que ele tenha esse consumo em livrarias, em teatros, em espaço culturais.
VE – Como acontecerá a mobilização para que as livrarias, os cinemas, enfim, os estabelecimentos que oferecem esses produtos e serviços, adotem o Vale Cultura?
FS – À principio, vai se dar com as empresas de lucro real porque tem a questão da renúncia fiscal e as empresas podem contar com isso para o desenvolvimento do Vale cultura. É importante lembrar que ele ainda está tramitando, com a aprovação no congresso vai ser desenvolvida toda uma campanha de conscientização, de mobilização, junto à sociedade brasileira pra que todos tenham uma dimensão da importância do Vale Cultura, não apenas para o consumo cultural, mas para a formação e o desenvolvimento humano dos trabalhadores. A partir daí nós vamos desenvolver várias campanhas e os próprios setores, inclusive, acabam se mobilizando pra isso.
VE – Os indicadores de exclusão apresentados no programa Mais Cultura revelam, entre outros, que o preço médio do livro de leitura é de R$ 25,00, um valor considerado muito elevado, tendo em vista a renda das classes C, D e E. Quais os principais entraves a serem enfrentados para baratear o livro no Brasil?
FS – Veja bem, o governo federal já tomou uma ação muito clara quanto a isso quando desonerou a cadeia produtiva do livro – editoras, livrarias e distribuidoras – do PIS, COFINS e PASEP. Era um encargo tributário pesado para essas editoras, para a cadeira produtiva, enfim…
VE – Você saberia dizer em torno de quanto gira esse valor?
FS – Isso girava em torno de, dependendo da empresa, cinco a nove por cento. Numa empresa de grande porte, isso podia chegar a 11%, não passava disso. Desde 2004, o setor produtivo não paga mais, a alíquota desse encargo hoje é zero. E uma das metas quando houve a desoneração era fazer cair o preço do livro. Estudos do próprio setor, do próprio sindicato dos editores de livros, da Abrelivro, apontam que tem havido uma queda no valor médio do livro. A gente compreende que essa queda pode existir, eu pelo menos imagino que tem sido possível manter uma certa regularidade do preço do livro no Brasil, mas o livro ainda é muito caro, é quase inacessível se a gente for considerar esse valor de 25 reais, então embora tenha havido a desoneração e o setor tenha se comprometido em gerar uma queda no preço, ainda sim, o livro é muito caro para as classes C,D, e E.
VE – Agora, para qualquer comprador de livros no Brasil é muito claro que um dos grandes entraves do consumo é a distribuição, não é? Quer dizer, muitas vezes o livro tem até um preço razoável, mas o frete o torna inacessível. Que estratégias vocês tem traçado para lidar com essa questão da distribuição?
FS – A gente está agora numa fase de avaliação do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL). Realizamos conferências em mais de 23 Estados e essa questão que você está apontando também foi citada em algumas dessas assembléias, sobretudo em Estados do Nordeste, do Norte e também do Sul e isso revela um problema seriíssimo da circulação do livro, de como ele vai chegar lá na ponta de uma maneira mais equitativa em cada região. A gente vive num país de dimensões continentais e isso, de fato, é um problema. Têm surgido propostas de trabalharmos com os Correios pra tentar minimizar esse problema, os Correios podem ter um papel importante na melhoria, na qualificação dessa distribuição. No entanto também tem uma questão que compete à própria lógica do mercado, que envolve a relação das distribuidoras com as editoras, das distribuidoras com as livrarias. Tem uma lei que tem sido discutida no congresso que é a Lei do Preço Fixo, ou do Preço Único, que já vigora na França. De certa forma, ela procura equilibrar melhor essa relação entre as grandes, pequenas e médias editoras ou livrarias. Eu penso que essa questão da distribuidora nós temos de enfrentar da maneira mais adequada, considerando a diversidade geográfica, mas também a cultural, por que não se trata apenas de fazer com que os livros produzidos no Sudeste cheguem ao Norte, ao Nordeste ou ao Sul, mas também de como os livros de todas as regiões cheguem a todas as regiões do Pais, entende? Porque há um elemento importante nisso que é a bibliodiversidade. É preciso trabalhar o fomento da cadeia produtiva do livro no Brasil considerando a bibliodiversidade do País.
VE – Vendo as apresentações dos planejamentos do PNLL para 2010, apresentadas por você nas conferências, nós da Vida e Educação ficamos nos perguntando quanto às atribuições do Ministério da Educação nessas ações, já que a maior parte delas cabiam ao MinC. Como vocês avaliam a participação do MEC, em termos de responsabilidades, no PNLL?
FS – Bem, primeiro foi um tiro certeiro, digamos assim, instituir o PNLL como uma ação interministerial, entre Ministério da Educação e Ministério da Cultura. Hoje compete aos dois ministérios o desenvolvimento da política do programa e das ações na área de Livro e Leitura. Obviamente, o MEC trabalha mais com a dimensão pedagógica, educacional da leitura, e o MinC, por sua vez, desenvolve uma outra intervenção, que é a cultural da leitura, ou seja, a democratização do acesso, a formação leitora, o fomento da economia do livro. Quando a gente apresenta o PNLL e alguém acha que talvez possam haver mais ações do Ministério da Cultura do que do MEC, é mais porque coube a nós a apresentação. Talvez se fosse uma pessoa do MEC apresentando, possivelmente esse equilibro seria maior. Se tivéssemos ali uma pessoa do MEC junto essa divisão seria mais clara, acontece que foi o MinC que puxou as assembléias. Mas é bacana deixar claro que o MEC também tem qualificado suas ações a partir do PNLL, seja o próprio Plano Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE), em que, a partir do Plano, se repensaram os livros não só em relação à educação infantil, mas para o ensino fundamental, médio e para a EJA. Hoje o PNBE, que antes era um kit de livros enviado para as escolas, passou a desenvolver uma política de formação de leitores e isso certamente demonstra uma articulação MinC e MEC.
VE – Essa pergunta está relacionada às ações do Ministério da Cultura, mas é um tanto pessoal: como você se sente ao saber que os Agentes de Leitura, um projeto de sua autoria, desenvolvido ainda aqui no Ceará, será expandido a todo o País em 2010?
FS – Ah, essa pergunta é, de fato, muito pessoal, mas eu vou tentar colocar numa perspectiva mais geral. O projeto Agentes de Leitura, quando nós o pensamos no Ceará, em 2005, ele foi estruturado dentro de um conceito de uma política publica que já vinha sendo desenvolvida, o Plano Nacional de Cultura. Então, a gente tentou traduzir um pouco as dimensões do próprio governo Lula, que coloca a cultura como expressão simbólica, de cidadania e de economia. Quando pensamos esse projeto, na minha cabeça, sempre que eu ouvia a expressão Agentes de Leitura vinha imediatamente os agentes de saúde. Não vinha um bibliotecário ou um professor ou um arte educador especificamente, apesar de todos serem mediadores de leitura também. Mas me vinha aquela pessoa batendo na casa do cidadão, levando informações e prevenção em relação à saúde. Aliás, o Ceará também foi o primeiro Estado a desenvolver essa ação de saúde. Então, é até interessante pensar que outro programa que teve inicio no Ceará também está sendo transformado em uma política pública nacional. Eu acho que o resultado disso veio do inicio do projeto, no final de 2005, e da firmeza da atual gestão em ter dado continuidade ao programa. É louvável isso por que revela também um amadurecimento da própria política de cultura no Brasil, acontece muito de haver mudança de gestão e, às vezes, por se tratar de uma política da gestão anterior, enfim… Hoje ver o Agentes de Leitura inserido no programa Mais Cultura como um projeto nacional é, para mim, muito mais que uma experiência pessoal. A minha satisfação, se podemos dizer essa palavra, é como servidor público, não apenas por reconhecimento pessoal, mas da política pública em si.
Autor: Neila Baldi
Fonte: Revista Vida e Educação