Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Artigo IV de Os Estatutos do Homem, de Thiago de Mello.
O grande poeta Thiago de Mello protagonizou com o habitual brilho, no dia 28/6, o encerramento da 9ª Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, evento definitivamente consagrado na agenda cultural brasileira – é, depois da de Porto Alegre, a maior feira de livros do País em espaço aberto. O Amazonas, terra natal do poeta, era o Estado homenageado deste ano.
Após o ato que lotou o Teatro Pedro II, o jornalista e escritor ribeirão-pretano Galeno Amorim, batalhador da causa do livro, idealizador daquele evento e patrono de sua nona edição, chamava a atenção para o fato de que Thiago de Mello havia pontilhado sua palestra com reiteradas referências à ética como valor essencial no comportamento humano.
Certamente não era a intenção imediata do bardo amazonense, mas o recado cai como uma luva, neste exato momento, para as instituições representativas do mundo do livro no Brasil. Aos fatos.
Em dezembro de 2004 o governo federal isentou do recolhimento de PIS e Cofins toda a cadeia de produção do livro. As entidades mais representativas do setor assinaram o compromisso de contribuir, em contrapartida, com 1% de seu faturamento para um fundo a ser criado com o objetivo de investir no incentivo à leitura no País. E prometeram discutir e apresentar uma proposta para a formação desse fundo, então batizado de Fundo Pró-Leitura.
Nestes quatro anos e meio, a desoneração fiscal rendeu a economia de algumas centenas de milhões de reais para editoras, distribuidoras e livrarias. E até agora nenhuma providência concreta foi adotada pelas entidades competentes para discutir – que dirá criar! – o tal fundo prometido.
Tem-se notícia, é verdade, de algumas iniciativas de alguma forma relacionadas com a questão. A mais relevante foi a criação, em outubro de 2006, do Instituto Pró-Livro (IPL), uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) mantida pelas três mais importantes entidades do setor (CBL, Snel e Abrelivros). Para fomentar a leitura e difundir o livro, nestes quase três anos de atividade o IPL arrecadou contribuição espontânea dos mantenedores no montante aproximado de R$ 10 milhões. Suficientes, pelo menos, para patrocinar a segunda edição da Retratos da Leitura no Brasil, que ampliou e aprofundou o até então único estudo em âmbito nacional sobre o comportamento leitor do brasileiro, divulgado em 2001. Essa nova versão, de 2008, é certamente uma importantíssima referência não apenas para as políticas públicas no campo do livro e da leitura como para o aprimoramento da gestão do negócio editorial.
Mas, convenhamos, é muito pouco para o tamanho do desafio que se tem pela frente, especialmente quando se sabe que, na esfera do poder central, neste ano de 2009 os recursos orçamentários destinados ao livro e à leitura são da ordem de R$ 160 milhões, distribuídos em quatro áreas do Ministério da Cultura.
O Fundo Pró-Leitura, em tudo o que depende da iniciativa do setor privado como contrapartida à isenção tributária que desfruta há quatro anos e meio, continua empacado no âmbito da retórica e da tergiversação.
É claro que, nesta Botocúndia a que já se referia Monteiro Lobato, o poder público não é exatamente quem tem mais autoridade moral para indigitar desvios de conduta no setor privado. Mas, convenhamos ainda, as entidades do livro estão dando muita chance para o azar, um verdadeiro tiro no pé, ao afetarem surpresa, até indignação, ao serem cobradas – “quem? eu?” – pela promessa até agora não cumprida.
Pois é exatamente essa a cena que se desenrola no momento. Diante da falta de iniciativa do setor privado, o Ministério da Cultura elaborou projeto que finalmente cria o Fundo Pró-Leitura, rebatizado de Fundo Setorial do Livro, Leitura e Literatura, encaminhado ao Congresso Nacional por intermédio da Frente Parlamentar da Leitura, na Câmara dos Deputados. Esta convocou as entidades do livro para debater o assunto em audiência pública no dia 16 de junho. O resultado foi patético: o Snel, sindicato dos editores, simplesmente se manifestou contra a criação do fundo. A Câmara Brasileira do Livro e a Abrelivros (livro didático) mostraram-se, em princípio, a favor da ideia (ora, viva!), mas com reticências que, no limite, podem inviabilizá-la ou torná-la inócua. Como, por exemplo, sugerir a incidência do 1% para o fundo sobre o lucro, e não sobre o faturamento das empresas.
Chega a ser inacreditável, quase cinco anos depois do primeiro capítulo da novela, a CBL ter registrado, em seu site oficial, o seguinte resumo do que rolou na audiência: “As entidades do livro (…) estabeleceram consenso quanto à necessidade de discutir com mais tranquilidade e de maneira mais ampla a minuta de criação do Fundo.”
A perdurar esse impasse, será inevitável que, mais cedo ou mais tarde, uma canetada acabe com a festa, restabelecendo a tributação. Para as grandes empresas do setor, exatamente as que controlam o poder nas entidades representativas, esta será apenas mais uma contrariedade em tempos de crise. Para as editoras e livrarias pequenas fora do Simples pode ser fatal.
Resumindo: há quase cinco anos as entidades do livro prometeram e até agora não cumpriram a devida contrapartida à desoneração fiscal.
Durante todo esse tempo se beneficiaram de recursos que pertencem a todos nós, a brava gente brasileira. E continuam negaceando. Alguma coisa que ver com ética?
Fala, Thiago!
Texto: A. P. Quartim de Moraes
Fonte: O Estado de S.Paulo
Fala, Thiago!
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